AS TAREFAS DO FEMINISMO RADICAL BRASILEIRO APÓS O GOLPE

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As feministas radicais brasileiras têm tomado diferentes posicionamentos, e partido de diferentes entendimentos em relação aos processos políticos que temos vivido em nosso país. Algumas encontram-se ainda hoje reticentes em admitir que vivemos um golpe. Outras, demasiadamente influenciadas pelos discursos petistas, aceitam que foi um golpe mas concentram suas esperanças na ilusão de um novo governo de conciliação de classes liderado por Lula em 2018. Nós da GARRa Feminista buscamos com este texto ajudar a avançar na unidade entre as feministas radicais através da crítica, pois entendemos que, neste momento, é crucial elaborar consensos que nos permitam construir uma agenda conjunta de lutas e superar a fragmentação que tem fragilizado nosso campo, impossibilitando a construção de um projeto feminista radical para o Brasil. A análise que segue é o fruto de discussões que realizamos ao longo de cerca de dois anos, e que compartilhamos agora:

1 Precisamos primeiramente reconhecer que passamos por um golpe, e que esse golpe não foi apenas contra uma governante, um governo ou um partido. Foi um golpe contra a classe trabalhadora, como se revelou posteriormente com a agenda de cortes e reformas, e foi um golpe contra a classe das mulheres. Um golpe, ainda que um golpe parlamentar – ou golpe branco, como foi chamado por alguns – difere em muito de um golpe militar, mas não deixa de ser um golpe todavia, e também significa uma ruptura democrática com sérias implicações para populações exploradas e para os movimentos sociais. Deixemos de lado a discussão idealista sobre o que é ou não legítimo, que foi feita de maneira leviana por alguns partidos, ao se recusarem a chamar o governo Temer de ilegítimo, por considerar que os governos anteriores também o seriam por não representar verdadeiramente os interesses do povo. Consideremos a realidade de uma democracia capitalista: o que é legítimo é nada mais que o que foi legitimado. O processo eleitoral é o que legitima um governo e confere a este o direito de formular e aplicar políticas. Enquanto feministas radicais, não defendemos de nenhuma forma a via reformista, nem entendemos que é pela via eleitoral que a revolução que desejamos virá, mas entendemos que uma ruptura nesses processos de legitimação provocada pelos setores da direita, que representam as burguesias nacional e internacional, têm sérios impactos para o povo, e que as lutadoras e os lutadores do povo ficam enfraquecidos em sua capacidade de influenciar decisões e obter vitórias nas lutas pontuais quando não há garantia sequer que os próprios processos decisórios do estado serão cumpridos. Nesse sentido, reivindicar que foi sim um golpe assume uma importância política fundamental. Precisamos deixar registrado na história que o que vivemos foi e é um golpe, e construir as nossas lutas a partir disso daqui para frente.

2 Foi um golpe patriarcal. Não (só) por ter deposto uma presidenta mulher, mas por terem se colocado no poder setores políticos conservadores e supremacistas masculinos, ligados a organizações patriarcais como as igrejas. Verificamos isso pela própria agenda do golpe, de desmonte de conquistas feministas como a aposentadoria que reconhece a dupla jornada feminina decorrente da divisão sexual do trabalho, as “reformas” educacionais, o Estatuto da Família voltando a tramitar e a ameaça, agora mais forte, do risco Estatuto do Nascituro ser aprovado no jogo político entre setores diversos da direita, em que os direitos das mulheres viram moeda de troca. A precarização do trabalho e o aumento da informalidade afetam gravemente a condição das mulheres brasileiras, e somado à dificultação do acesso às políticas de assistência e previdência, resultam no aumento da população feminina em situação de prostituição e de rua, e o encarceramento das mulheres. Vimos também, com muito desgosto, o aspecto patriarcal do golpe revelado numa nova ascensão do primeiro-damismo nas figuras de Marcela Temer e Bia Dória, esposa do infame ex-prefeito de São Paulo, e mundialmente de Melania Trump.

3 Mais um ato do ataque dos setores da direita foi o julgamento do ex-presidente Lula e sua prisão. A forma com que todo o processo ocorreu, o tempo recorde de julgamento até a decisão do Supremo Tribunal Federal, com uma ameaça velada do general da ativa do exército, mostra um claro interesse em mantê-lo preso por sua possibilidade real de ser vencedor das eleições de 2018. Se há de fato uma culpa de Lula pelo que está sendo acusado, que se faça por um processo da maneira correta, com todas as instâncias, no tempo necessário e que as provas sejam apresentadas de maneira contundentes. E, assim como na questão do golpe, a parcialidade descarada com que o plano de prisão foi executado constitui uma ameaça contra os projetos da esquerda. A burguesia deixa claro que não está mais interessada na conciliação representada (e efetivada por mais de uma década) pela figura do ex-presidente, e que está determinada a eliminar qualquer oposição a seus interesses.

4 Não nos esquecemos, no entanto, dos erros graves dos governos PT. O apaziguamento dos movimentos sociais, a lei antiterrorismo, e a política econômica de juros elevados, que incorreu na dívida pública, estão agora sendo utilizados pelo governo da direita contra o povo, mas as raízes do que agora está sendo usado a atacar o povo surge da aliança do PT com setores da burguesia. Entendemos que os governos PT foram bem sucedidos em garantir avanços para a classe trabalhadora em um momento diferente do capitalismo, de crescimento e não de crise, que a escolha foi por uma política de conciliação de classes, que buscava aliar os interesses da burguesia e da classe trabalhadora, e que esta política não mais será possível daqui para frente. Não há saída fácil para esta crise, nem para a classe trabalhadora nem para a classe das mulheres. E muitas das dificuldades que enfrentamos agora está diretamente relacionada ao enfraquecimento da esquerda que ocorreu durante os governos PT.

5 A direita brasileira está fragmentada. Por um lado, isso fortalece pequenos grupos de extrema direita (neonazistas, fascistas, a “alt-right”), que se articulam mais e ficam mais ousados. Os recentes ataques com armas de fogo contra caravanas e acampamentos da esquerda mostram que esses grupos estão dispostos a ações mais violentas.

6 É preciso agora construir o novo projeto político de esquerda para o Brasil sobre os escombros do velho projeto político, e as feministas radicais não devem se ausentar dessa tarefa. Ainda que sejamos poucas em número, e que nossas organizações ainda não tenham atingido o estado que desejamos, não podemos nos refugiar no esquerdismo e no sectarismo, e formular políticas que nos pareçam moralmente corretas, mas sejam inaplicáveis, e nem formulá-las no isolamento, com base no idealismo. Precisamos estar em constante diálogo com outros movimentos, sendo influenciadas e também influenciando.

7 Um dos campos dessa disputa da direita é justamente o feminismo. Precisamos construir um feminismo radical, inequivocamente de esquerda, massivo, popular. A direita liberal avança, neste momento, nas chamadas “políticas de igualdade” e num projeto de capitalismo da diversidade e da inclusão. Nós, enquanto feministas radicais, rejeitamos as abordagens da igualdade, da diversidade e da inclusão, que têm sido terreno fértil para a desestruturação do feminismo a partir da sua inclusão no estado e no mercado. Somos incontestavelmente pela libertação das mulheres, e não aceitamos nada menos que isso.

8 Nós precisamos lembrar que o feminismo radical sempre será feito por mulheres e para mulheres. Entendemos que há muitas companheiras em organizações mistas e que há companheiros homens que entendem a importância do movimento feminista centrado em mulheres, mas precisamos também compreender que as organizações mistas não priorizam a luta das mulheres. No contexto do 1º de maio, o dia das trabalhadoras e trabalhadores, percebemos o esquecimento da divisão sexual do trabalho pelas organizações de esquerdas, com uma recusa da maioria em fazer o debate sobre o trabalho das mulheres ‘donas de casa’, que continua sendo um trabalho não assalariado e tratado como “apêndice do trabalho assalariado”, mas que é o resultado direto da opressão da classe das mulheres pela classe dos homens. É hora da esquerda efetivamente fazer o debate com o reconhecimento de que os homens trabalhadores também utilizam o trabalho doméstico não remunerado das mulheres para o benefício da classe masculina.

9 Precisamos entender que não há solução de curto prazo, nem para as mulheres nem para o povo brasileiro. Não tem acordão que nos salve. As pequenas conquistas garantidas pela via do ativismo não são mais uma possibilidade para os direitos das mulheres e nem voltarão a ser. Assim como não é possível um novo pacto social entre burguesia e proletariado, um pacto entre as classes dos homens e das mulheres não está em nosso horizonte. Não estamos vivendo em uma época progressista em relação a direitos humanos, pois é necessário intensificar a exploração das mulheres, inclusive a exploração reprodutiva, para garantir o lucro. É necessária uma militância organizada, vontade e coragem para massificar o movimento e mudar a correlação de forças, para retomar a luta em busca de vitórias e não mais apenas contra perdas. Diante de tudo que foi aqui exposto, embora nossa análise compreenda o papel desempenhado pela prisão de Lula no contexto de ataques contra a esquerda, não podemos fazer da exigência por sua liberdade a nossa máxima prioridade. Entendemos que não podemos perder de vista o caráter fundamentalmente patriarcal das ofensivas da direita e que precisamos sempre ter as mulheres no centro de nossa luta. As mulheres serão sempre a nossa prioridade, mesmo quando – ou principalmente quando – são esquecidas por outros setores da esquerda.

10 O cenário de ataques constantes e de declínio das conquistas traz um desânimo, uma desesperança e um cansaço que atuam para nos afastar das batalhas. Com as vitórias distantes no horizonte, precisamos recuperar a alegria na luta, em nos encontrarmos nas ruas, em estarmos juntas. Construir uma militância que dure o tempo necessário para massificar o movimento e mudar a correlação de forças.

À luta, companheiras! Por um projeto feminista e radical para o Brasil e para o mundo!

 

2 comentários sobre “AS TAREFAS DO FEMINISMO RADICAL BRASILEIRO APÓS O GOLPE

  1. na frase do item 8, “… o trabalho das mulheres ‘donas de casa’, que continua sendo um trabalho assalariado e tratado como ‘apêndice do trabalho assalariado’…”, não deveria ser “que continua NÃO sendo um trabalho assalariado”?

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